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Família judia tenta reaver pintura que faz parte do acervo do Masp - Jewish family tries to reclaim painting that is part of the collection of the Art Museum of Sao Paolo (MASP)

1998
1970
1945
Globo 13 March 2014
Suzana Velasco y Thiago Herdy 

Herdeiros de banqueiro alemão pedem que o museu de São Paulo devolva a obra ‘O casamento desigual’, leiloada em 1936 devido à perseguição nazista e doada ao museu brasileiro em 1965


A tela “O casamento desigual”, de discípulo de Quentin Metsys - Divulgação/Masp

RIO e SÃO PAULO — Uma família judia de origem alemã tenta negociar com o Museu de Arte de São Paulo a restituição da pintura flamenga “O casamento desigual”, que integra o acervo do Masp desde 1965, por doação. A obra atribuída a um discípulo de Quentin Metsys (1466-1530) foi levada a leilão pelas duas filhas do banqueiro Oscar Wassermann em 1936, dois anos após a sua morte, para pagar a taxa de saída da Alemanha nazista exigida aos judeus. Representante dos quatro netos de Wassermann, um escritório de advocacia alemão busca contato com o Masp há seis anos, sem obter resposta.

— Em 2008, enviamos uma carta ao museu pedindo apenas para confirmar a identidade da obra e comprovando que ela pertencia aos herdeiros de Wassermann, forçados a se desfazer dela por conta da perseguição aos judeus — conta, por telefone, o advogado Henning Kahmann, do escritório Trott Zu Solz Lammek, em Berlim. — Idealmente, queremos a devolução da tela. Mas estamos abertos a negociar uma indenização. Especialistas no mercado da arte estimam que ela valha US$ 30 mil (cerca de R$ 71 mil). Não é um valor incrivelmente alto.

Segundo o advogado, a carta foi reenviada ao Masp em 2011, também sem resposta. Em maio do ano passado, ele fez nova tentativa, mas acrescentou entre os remetentes o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) — que, vinculado à Secretaria estadual de Cultura, tombou o acervo do Masp em 1973, quatro anos após o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Por meio de sua assessoria, a direção do Masp informou que não vai comentar o caso.

Argumento ético

A família Grunebaum, dos herdeiros de Wassermann, alega que a tela só foi leiloada para que pudessem sair do país, pagando taxas que alcançavam 50% do patrimônio de judeus que desejassem emigrar. Por isso, pede sua devolução com base na Conferência de Washington, de 1998, segundo a qual obras confiscadas em decorrência de perseguição nazista devem ser devolvidas a seus donos ou sucessores.

Como declaração de princípios internacionais, o documento da conferência não cria obrigação legal de devolução da tela, doada ao Masp em 1965 pelo barão Thyssen-Bornemisza, um dos maiores colecionadores de arte do século XX. Ainda assim, parecer produzido em junho do ano passado pela historiadora Deborah Regina Leal Neves e pela arquiteta Sarita Carneiro Gonovez, do Condephaat, sugere o pagamento de uma indenização para a manutenção da obra no território brasileiro: “Uma negociação do museu com a família, buscando-se a permanência da obra no Brasil, seria o ideal. Contudo, não nos cabe intervir diretamente neste acordo. (…) Trata-se de uma questão mais ética e moral do que jurídica”, escreveram as técnicas.

Embora a Conferência de Washington trate apenas de obras confiscadas, e não das vendidas sob pressão, a Declaração de Terezín, assinada pelo Brasil em 2009, recomenda a devolução para casos de “vendas forçadas ou sob coação” entre 1933 e 1945, ampliando o conceito de arte confiscada.

— Na Alemanha, com uma série de decisões baseadas na Conferência de Washington, já há jurisprudência que cria uma obrigação legal. Não é o caso em outros países, já que o documento é mais uma declaração política. — reconhece Kahmann, procurado após O GLOBO ter acesso às recomendações do Condephaat, que também ainda não respondeu ao advogado. — Sabemos que essas instâncias de governo podem demorar, e ainda temos esperança de ter uma resposta. É uma questão ética, pois a família só perdeu essas obras porque era judia e foi perseguida.

O parecer do Condephaat foi discutido na reunião mais recente do conselho do órgão, realizada na última segunda-feira. Os integrantes entenderam que o grupo “não tem poder de definição da propriedade da obra” e que caberia ao colegiado apenas avaliar a “manutenção do tombamento enquanto proteção do bem, por sua qualidade artística”, tema que não foi colocado em discussão.

A eventual devolução do quadro dependeria de um processo de suspensão do tombamento tanto no âmbito do conselho quanto do Iphan, além de uma autorização da Presidência da República.

Obras sem paradeiro

Os netos de Wassermann representados pelo advogado são herdeiros diretos de Karin, filha do banqueiro exilada nos Estados Unidos — a outra filha, que fugiu para a Inglaterra, não deixou filhos. No catálogo do leilão, realizado em 1936 em Berlim por Paul Graupe, há outros itens vendidos por elas, mas não se conhece seu paradeiro. No caso da tela “O casamento desigual”, o único registro entre o leilão e a doação é a venda da obra por uma galeria de Leipzig, na Alemanha.

De acordo com os registros do leilão, a tela da escola de Quentin Metsys (também conhecido como Matsys ou Massys) foi leiloada por 1.550 marcos da época (Reichsmark). Em leilões da Christie’s realizados já nos anos 2000, obras de discípulos de Metsys foram vendidas por valores entre US$ 1 mil e US$ 23 mil (entre R$ 2.360 e R$ 54.280).

Oescritório que hoje representa os herdeiros de Wassermann já atuou em outras requisições de devolução de obras por conta de confiscos aos judeus, sobretudo na Alemanha. Ele também representou a família num pedido de indenização ao governo alemão, devido à perda da propriedade do banco Wassermann, nos anos 1930.

Antes da ascensão de Hitler, Oscar Wassermann ocupou cargos influentes como representante da burguesia financeira judaico-alemã, entre eles a presidência do Deustche Bank e a vice-presidência do Banco Central Alemão. Sua atuação no Tratado de Versalhes teria gerado forte manifestação antissemita contra o banqueiro, acusado de negociar termos desvantajosos para a Alemanha. Com a chegada de Hitler ao poder, em 1933, ele foi destituído do cargo.

No ano seguinte, Wassermann morreu, o que levou a família a vender bens para angariar fundos e fugir da Alemanha nazista, entre eles a tela “O casamento desigual” — que já se cogitou ser de Leonardo Da Vinci, foi atribuída a Quentin Metsys, e hoje é considerada de autoria de um discípulo do pintor flamengo.

Anos depois, a obra, que trata do casamento arranjado por interesses financeiros, integraria o acervo de arte de Thyssen-Bornemisza. Suspeita-se que ele tenha herdado a tela do pai, Heinrich, morto em 1947 e que começara a colecionar arte nos anos 1920. O barão continuou a coleção, que hoje integra o Museu Thyssen- Bornemisza, em Madri.

Casamento com brasileira

Quando morreu, em 2002, estima-se que o barão dispunha de mais de 1,5 mil obras em sua coleção. Mas, bem antes disso, o caminho de Thyssen-Bornemisza passaria pelo Brasil. E tudo por culpa de uma mulher: Liliane Denise Shorto, jovem de 25 anos de Marília, em São Paulo, frequentadora assídua de colunas sociais, com quem se casou em 1967 e teve um filho. Era o quarto casamento de Thyssen-Bornemisza.

No parecer, as técnicas do Conselho de Defesa do Patrimônio sugerem que a doação da obra ao museu montado por Assis Chateaubriand teria ocorrido em função do novo vínculo estabelecido pelo barão com a sociedade brasileira — ainda que o casamento tenha ocorrido dois anos após a doação.

O vínculo se encerrou de maneira nada amigável, na primeira metade dos anos 1980. Em meio ao processo de separação, o barão conseguiu que Denise fosse presa em Liechtenstein, sob acusação de apropriação de obras de arte, joias e até do iate do marido. Por sua vez, ela o denunciou por sonegação de impostos.

Em 1988, quando ele tentou leiloar uma obra de Renoir avaliada em US$ 1 milhão, a ex-mulher entrou com ação na Justiça solicitando bonificação extra para liberar a negociação da obra. O barão se casou mais uma vez depois da separação.

 

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